Espaço para a divulgação da arte e técnica de problemas de xadrez; sua evolução histórica; soluções de problemas e crônicas acidentais. Todos os direitos reservados. © Roberto Stelling

20 de março de 2006

Gênese III

Depois de um longo e tenebroso inverno onde não era possível fazer o upload de imagens no Blogspot voltamos à programação normal.

Um dos nossos últimos assuntos foi o tema Turton, cuja execução aparece pela primeira vez em 1856 neste problema. Quase 50 anos depois o genial compositor americano Otto Wurzburg compôs esta miniatura ilustrando o tema de forma simples e magistral.

Otto Wurzburg
V Bahn Frei, 1895

#3

É fácil perceber que não há uma forma adequada de colocar a dama branca em jogo. 1. Dg4? não oferece maiores perigos. A melhor tentativa parece ser 1. Dh5? planejando 2. De8 seguido de Dc8# porém este plano é refutado por 1. ... a5! seguido de 2. a6 e não há mais mate em c8.
Se não é possível passar a Dama primeiro então vale a pena tentar trazer o bispo para trás da dama e depois jogar Dg4. Assim surge:
1. Bh3! (ameaçando 2. Dg4 seguido de 3. Dc8#)
porém as pretas seguem com
1. ... a5 ao que as brancas jogam o fulminante:
2. Da6+ Rxa6
3. Bc8#
2. ... R~
3. Dc8#

O lance inicial (Bh3) seguido da ameaça (Dg4) formam o Tema Turton.

Outro tema de dobra interessante é o Tema Zepler. Aqui a dobra ocorre como no Turton porém as peças que foram a dobra invertem as suas posições para poderem cumprir com a estipulação do problema.

Erich Zepler
Hamburgischer Correspondent, 1929

#3

Aqui o simples 1. Tgb2? falha devido a 1. ... Bxd6! e não há como dar mate no terceiro lance.
A chave é então:
1. Tb4! (lance de espera que força o bispo preto a sair da diagonal f8-a3)
1. ... Bg7
2. Tgb2 ~
3. Tb8#

Então a T de g2 forma a dobra como elemento posterior e não frontal, como aparece na tentativa 1. Tgb2?

Este mesmo tema é mais tarde executado com maestria por Hans Ott, em 1959, em um direto em 7 lances.

Hans Ott
1959

#7

Aqui se as pretas jogarem 1. ... Bd5+ o jogo seguem com:
1. ... Bd5+ 2. Rxd5 Ra2 3. Dxb1+ Rb3(a3) 4. Th3+ Rb4 5. Dxb2+ seguido de 6. Ta3#.
Assim é essencial que a torre branca se mantenha na primeira fila e possa ir à terceira quando necessário.
Mas as pretas podem jogar b4, b3, b5 e b4 e tentar provocar um pate, o que fazer ? A solução é inverter a posição da dama e da torre para poder responder ao b4 final com uma manobra surpreendente. Vejamos:
1. Tf1! b4
2. Da4 b3
3. Da7 b5
4. Dg1 b4
5. Txb1+ Bxb1+
6. d3 Ra2
7. Da7#

A inversão da dama com a torre executa o tema Zepler. 1. Te1? falha porque as pretas jogam 1. ... Bd5+! e a torre branca não tem mais acesso à terceira fila!

Tudo isto nos leva ao seguinte problema de Erich Zepler e talvez a sua composição mais sensacional. Zepler era um mestre dos temas lógicos, onde estratégias de jogo são definidas por elementos lógicos que precisam ser alcançados para a execução da solução.

A. Kraemer and E. Zepler
1st Prize Neue Leipziger Zeitung 1935
(corrigido em 1948)

#4

Mate em 4! Um doce para quem resolver. ;)

14 de março de 2006

Gênese II

O problema abaixo talvez seja o mais conhecido de Adolf Anderssen e é um representante típico da época de transição de meados do século XIX.

Antes de dar mate as brancas precisa eliminar as possibilidade de contrajogo das pretas iniciadas com 1. … e1=D+, assim a chave só pode ser o aparentemente improvável: 1. De1! Após a captura da dama branca as brancas podem seguir com seu plano de jogo: 2. Td4 ameaçando 3. Ta4+ Bxa4 4. b4+ D(b)xb4 (se as pretas jogaram 1. ... dxe1=D(b) ou 1. ... fxe1=D(b) e 2. d1=~

Adolf AnderssenIllustrated London News, 1846

#5

Assim a solução é:
1. De1! dxe1=D (ou 1. … dxe1=B ou 1. … fxe1=D ou B).
Agora não há como refutar o plano das brancas.
2. Td4 ~ (este sinal simboliza qualquer lance das pretas)
3. Ta4+ Bxa4
4. b4+ Dxb4
5. axb4#

E por último um problema com características mais modernas de Adolf Anderssen mas ainda assim de estratégia simples.

Adolf AnderssenLeipziger Illustr. Ztg, 1948

#3

1. Rb1! Bh5
2. Tg6 (zugzwang preto)
seguido de 3. Cf7#, 3. Cxg6#, 3. Bxg7# ou 3. Tg8#

Estes problemas de Anderssen são bem característicos da época de transição porém ainda não possuem elementos que possam definir um tema.

Tres categorias de mecanismos importantes começaram a ser explorados naquela época: remoções (clearance), interferências e dobras (doubling).

O tema Turton, que aparece pela primeira vez no problema abaixo, é um caso típico de dobra onde uma peça mais fraca se move para trás em uma linha para que outra peça de maior força possa se mover no sentido contrário na mesma linha (quando se fala linha inclui-se linhas, colunas e diagonais), o efeito de duplicação de forças é essencial no tema.

Henry Turton (versão)Illustrated London News, 1856


#3

A primeira ameaça que ocorre ao solucionista é retirar o bispo de c3 ameaçando Da3# mas para onde o bispo deve ir ? Se as brancas tentam 1. Bf6? as pretas defendem com 1. ... b4 e não há mais tempo para dar mate (se 2. De5 c3) assim a solução é:
1. Bh8! b4
2. Dg7 e não há defesa para a dupla ameaça3. Dxb2# e 3. Da7#

1. ... Ta8
2. Dg7 Ta2
3. Dg1#

Assim está caracterizado o tema Turton. Uma peça menor (o Bispo neste caso) faz um lance crítico (Bh8 que passa pela casa g7) que permite o dobramento de uma peça de maior força (a Dama) mais tarde durante a solução do problema.

No mesmo ano o genial Sam Loyd publicou o seguinte problema, que foi o precursor do tema Loyd-Turton.

Samuel Loyd, New York Clipper
10 de novembro de 1856

#4

Apesar da sua natureza inocente este é um problema de difícil solução. Deixo aos leitores o prazer de tentar resolvê-lo!
Até a próxima e boa sorte! :)

12 de março de 2006

Gênese

O ano de 1845, quando a composição do tema índio de Henry A. Loveday foi publicada na revista "Chess Player's Chronicle" de Howard Staunton (1810-1874), marca o início da era onde problemas de xadrez começaram a tomar a forma moderna. As definições e idéias daquela época se consolidaram no dercorrer do século XIX e início do XX com a escola clássica.
Os preceitos eram simples: as posições tinham que ser econômicas (se uma peça não participa do problema e não é essencial para a solução ou para evitar uma solução alternativa então não deve estar no tabuleiro!), as variantes tinham que ser únicas e sem duais e os compositores começavam a explorar elementos dinâmicos entre as peças como interferências, bloqueios, pregaduras, aberturas de linha, remoção (clearance) e semi-pregaduras.
A nomenclatura de temas também começa a se firmar nesta época. Em 1846, um ano após a publicação do seu primeiro problema, Henry A. Loveday envia outra composição, agora correta, ilustrando o tema índio para o Chess Player's Chronicle:

H. A. Loveday
Chess Player's Chronicle, 1846

#3

A solução, simples para quem viu o problema anterior de Loveday, executa o tema índio com o bispo interferindo com a torre, exatamente o contrário da sua primeira composição.

1. Td1! (lance crítico) g4 (único)
2. Bd2 (interfere com a Torre e descrava o Bispo preto) B~ (a notação "~" em problemas funciona como abreviação de "qualquer casa")
3. Ba5#

Até a metade do século XIX os problemas eram pouco mais que quebra-cabeças requintados e quase sempre baseados em posições que teriam ocorrido ou que poderiam ter ocorrido em uma partida xadrez. Muitos dos autores de problemas, nesta fase de transição, eram também fortes jogadores de xadrez. O exemplo mais notável talvez seja o alemão Adolf Anderssen, um dos melhores jogadores de xadrez da sua época e vencedor das partidas Imortal e Perene (também chamada de sempre-verde ou sempre-viva). Anderssen foi declarado, de forma não oficial porque o título não existia na época, campeão mundial após a sua vitória no Torneio de Londres em 1851. Em 1866 Adolf Anderssen perdeu para Steinitz o match que definiria o primeiro campeão mundial oficial; o placar de 6 vitórias e 8 derrotas dá idéia da força do equilíbrio do match, até porque a décima seguinda partida ainda apontava um empate em 6 a 6!
Anderssen foi um dos compositores da escola antiga e seus problemas ainda não mostram idéias e mecanismos que iriam permear as composições de mates diretos pelos próximos 150 anos.


Adolf Anderssen
Aufgaben für Schach, 1842

#4

Aqui é fácil perceber que o mate vai ser executado com o Rei preto em c3; a Torre branca deve dar mate em a3 e é necessário que o Bispo crave o peão de b4 (ou então o capture e domine b4 mas não há tempo para isto em 4 lances). Para resolver o problema então é necessário que:
a) O Bispo vá a b6 e a5
b) A torre tenha acesso a a3


1. Bb6+! (a) Rb3
2. Ta1 (b) c2
3. Ba5 (a) Rc3
4. Ta3#

O problema a seguir de Anderssen mostra uma estratégia já próxima dos problemas modernos mas ainda incipiente. A mesma estrutura de mate aparece em um problema posterior do francês Theodóre Herlin em 1845 mas com uma estratégia mais elaborada e que dá origem ao tema Herlin.

Adolf Anderssen
Aufgaben für Schach, 1842

#4

O Rei preto está afogado, o lance branco precisa ser com um dos Bispos mas dá para perceber que não se pode dar acesso ao Rei preto às casas g6 ou g5, porque assim ele escaparia da rede de mate. Portanto o único lance que desafoga o Rei e não dá acesso a estas casas é:

1. Bh5! Rxh5
2. Rg7 h6
3. Rf6 Rh4
4. Rg6#

Anderssen ainda compôs outros problemas, que veremos mais tarde, mas não fez a transição completa para a escola de composição que começava a surgir. Os anos seguintes foram marcados por novos autores e idéias que foram classificadas como "temas", como o tema índio de Loveday, e novos autores competiam em torneios de composição para encontrar o equilíbrio entre economia, beleza, engenhosidade e originalidade.

11 de março de 2006

Mais índios

Para finalizar a nossa abordagem do tema índio vejamos a seguir 3 ótimas execuções do tema.

Primeiro uma composição que combina duas idéias: tema índio e desbloqueio simultâneo de duas casas resultante de um roque. A idéia de utilizar o desbloqueio duplo resultante de um roque foi primeiro executada por Sam Loyd.


Recomendado Especial, 2003
Tim Krabbé-60 Jubilee Tourney - Moremovers
Chris Handloser

#5

O problema possui apenas uma variante, como é muito comum com o tema índio, mas o resultado é extremamente agradável:

1. O-O h5
2. Ce1 h4
3. Bh1 h3
4. Cf3 Rc6
5. Cd4#

O roque pequeno no primeiro lance simultaneamente libera a casa e1 para o Cavalo e h1 para o Bispo. Estes lances são essenciais para a execução do tema índio, para que o Cavalo possa se interpor ao Bispo no quarto lance.

Agora uma versão mais complexa que duplica a execução do tema.
M. Niemeijer
La Liberté 1928

#4

Se fosse a vez das pretas jogar (o que na linguagem de problemas é chamado de jogo aparente) a solução seria:

1. ... b5
2. Bc1 b4
3. Td2 Rf4
4. Td4#

Porém não há tempo para as brancas executarem esta variante, assim o problema só pode ser resolvido com:

1. Bxh6! b5
2. Rg3 b4
3. Tg5 Re3
4. Te5#

No jogo aparente o bispo cruza a casa crítica d2 para que a torre de d1 faça uma interferência "índia" em d2, no jogo real (após a chave) o bispo cruza a casa crítica g5 para que a torre de h5 faça uma interferência "índia" em g5.

Já o último exemplo é excepcional: duas execuções do tema índio consecutivas em duas variantes do problema. A ordem de jogo dos peões das pretas define como o mecanismo das brancas deve funcionar.

R. C. O. Matthews
1o. Prêmio, Die Schwalbe 1952

#6

1. Bh3! g6
2. Bxb6 d5
3. Td4 (índio) Rxf2
4. Txd5+ Re1
5. Bd4 (índio) Rxd2
6. Bf2#

1. ... d5
2. Txd5 g6
3. Bd4 (índio) Rxd2
4. Bxb6+ Re1
5. Td4 (índio) Rxf2
6. Txd1#


Por enquanto vocês estão livres de índios. ;)

10 de março de 2006

A solução de um problema

Terminamos o texto sobre o tema índio com o problema abaixo porém não mostramos a sua solução:

Viktor Melnichenko & Nikolai Rezvov
Torneio Jubileu 60 anos de Tim Krabbé, 2003
Terceira Menção Honrosa

Brancas jogam e dão mate em 4

Como resolver este problema? A solução de uma composição de xadrez (seja ela final, direto, inverso, ajudado ou mesmo um problema heterodoxo) é às vezes um mistério para jogadores iniciantes.
Porém a solução de problemas pode ser sitematizada, estudada e treinada. A facilidade para resolver problemas não é apenas uma questão de talento e sim uma habilidade que pode ser desenvolvida e aperfeiçoada.
Vejamos, de uma forma didática, o processo que passei para resolver o problema acima.

É fácil perceber a falta de movimentos das pretas: apenas o peão de g4 pode mover-se e mesmo para ele não há muitos tempos disponíveis.
Se fosse possível fazer com que o cavalo preto de d2 se movimentasse (por exemplo, tirando a torre branca de e2 da segunda fila) seria possível dar mate com Tc1, se o cavalo fosse para c4, e4, b1 e f1 ou com Db1, se o cavalo capturar o peão de b3; Tc1 seria mate também para Cf3 se o rei branco não estivesse em g1. Assim, nos próximos 3 movimentos as brancas tem os seguintes problemas para resolver:
(a) Retirar o rei de g1 (g2 e h1 são as únicas casas possíveis)
(b) Retirar a pregadura do cavalo de d2.

Se, na posição inicial, as pretas jogassem 1. ... gxh3 (como se as brancas não tivessem feito lance algum. Na terminologia de problemas isto se chama jogo aparente) o jogo seguiria com:
1. ... gxh3 2. Rh1 (a) h2 3. Te4 (b) Cf1(f3,xe4,c4,b1)/Cxb3 4. Tc1#/Db1#

Mas na posição inicial não há solução equivalente para 1. ... g3, assim a chave do problema (a chave de um problema direto é o lance inicial das brancas) deve, no mínimo criar uma variante para g3. A principal dificuldade de g3 é a ameaça gxf2+, o que ou evita que a torre de e2 saia da segunda fila a tempo ou força o rei branco a ir a f2 (lembre-se que precisamos mover o rei branco para g2 ou h1). A conclusão é que gxf2 precisa ser evitado. Como evitar gxf2 ? A forma mais natural é mover o peão branco de f2 para f3 ou f4!!

Como o lance 1. f4 interfere com o bispo branco de h6 é bem provável que a chave seja 1. f3.

Vejamos as variantes:
1. f3! gxh3 2. Rh1 (a) h2 3. Te4 (b) Cf1(f3,xe4,c4,b1)/Cxb3 4. Tc1#/Db1#

1. ... g3 2. Th2 gxh2+ (b) 3. Rh1 (a) Cf1(f3,xe4,c4,b1)/Cxb3 4. Tc1#/Db1#
2. ... g2 (b) 3. Rxg2 (a) Cf1(f3,xe4,c4,b1)/Cxb3 4. Tc1#/Db1#

1. ... gxf3 2. Rf2 fxe2 (b) 3. Rg2 (a) Cf1(f3,xe4,c4,b1)/Cxb3 4. Tc1#/Db1#

Perceba que em todas as variantes foi necessário resolver os ítens (a) e (b) acima, simples, não ? ;)

9 de março de 2006

Quatro ases

Já falamos sobre o tema índio e o famoso "Fiocati". O diagrama abaixo reproduz o problema de Francisco Fiocati.


Francisco Fiocati
A Gazeta, 1932

#3

Esta composição mostra o tema índio destilado ao máximo, não é possível ser mais simples e ao mesmo tempo tão engenhoso. Atualmente se espera que uma execução tão sintética de um tema tradicional seja antecipada (antecipações ocorrem quando um problema anterior exibe a mesma execução de uma idéa de forma idêntica ou quase idêntica). Uma busca em base de dados de problemas (como o Chess Problem Database Server) pode mostrar se a composição é ou não antecipada. Em 1932, quando o "Fiocati" foi publicado, a tarefa de encontrar uma antecipação era eminentemente um exercício de memória.

Alguns anos após a publicação do "Fiocati" na "A Gazeta" os editores da revista Chess, nos Estados Unidos, encontraram uma antecipação do índio do Francisco Fiocati. Exatamente a mesma posição foi publicada por Otto Wurzburg em 1907 ou 1909 embora os editores da revista Chess não soubessem precisar exatamente onde o problema foi publicado e quando.

O enigma foi finalmente resolvido por Edgar Holladay em 1976 quando este consultava os diagramas originais de Otto Wurzburg. Lá Edgar encontrou o "Fiocati" e no diagrama de Otto Wurzburg estavam escritas tres datas: 1907 e 1909, como havia afirmado a revista Chess, e também 23 de outubro de 1908. Provavelmente esta terceira data indicava quando o diagrama foi impresso. Após outras pesquisas Edgar Holladay desencavou mais uma antecipação! Veja o trecho abaixo de uma carta enviada a Idel Becker em 1976: "Mas resolver este pequeno enigma não é necessário já que o problema é, de acordo com os meus registros, antecipado por H. F. L. Meyer, como mostrado no diagrama em anexo; 1903 é anterior a 1909 e 1907. Não sei onde encontrei a antecipação de Meyer".

Aqui está o diagrama enviado por Edgar Holladay:

H. F. L. Meyer
Boy's Own Paper, 1903

#3

Exatamente a mesma posição dos dois problemas anteriores refletida "no espelho" (mais precisamente refletida no eixo da linha entre as colunas "d" e "e"). A estória poderia terminar aqui se uma quarta execução do mesmo tema, desta vez idêntica à posição de Meyer, não tivesse sido publicada na conceituada Deutsche Schachzeitung em 1927 pelo Dr. M. Hogrefe! Ou seja, quatro compositores de renome compuseram a mesma posição em um intervalo de quase 30 anos. O currículo dos tres últimos, Wurzburg, Hogrefe e Fiocati, não deixa a menor dúvida que este foi um caso de antecipação e não de plágio.

O ensinamento deste pequeno drama de composições enxadrísticas é que execuções sintéticas de temas clássicos são muito provavelmente únicas e um compositor buscando tal síntese tem a obrigação de fazer o dever de casa antes de começar o esforço de composição. O grande risco é acabar compondo um clássico Wurzburg, Meyer ou Fiocati!

8 de março de 2006

Torres de Areia

Recebi uma contribuição do incrível Leonardo Mano. O Mano tem uma das melhores páginas sobre problemas de xadrez na internet: "Problemas de Xadrez". A qualidade do seu conteúdo é tão notável que várias publicações online em outras línguas possuem ponteiros para suas páginas.
Leonardo Mano (ou Mano para quem o conhece) começou a jogar xadrez lá no final dos anos 70, início dos anos 80 na praia do Leblon. Na época havia um grupo de jogadores que sequer participavam de clube e se entretiam no final da tarde com seus tabuleiros à beira da praia. Eram cenas insólitas, xadrez e biquinis, suor de fim de tarde e finais de peões, xeques duplos e ressacas de verão, chopps gelados e meio jogos quentes. Tudo ali, lado a lado, uma espécie de wormhole ligando as praias do Rio de Janeiro ao Café de la Regénce. Fico com uma certa saudade quando passo hoje no posto 12 do final do Leblon, quase em frente ao Caneco 70, e percebo que não há o menor indício que alí se travavam diariamente batalhas sangrentas e figadais manchando o calçadão da praia com lances brilhantes e capivaradas homéricas.

Vários personagens daquele palco feito de areia, tabuleiros quadriculados, sol abrasador e peças penduradas ainda fazem parte do cenário enxadrístico do Rio de Janeiro, outros vivem só na memória dos que passaram ótimos momentos naquele clube ao ar livre.
Me lembro do amável Carlos Emery Trindade, responsável pelo departamento de xadrez do Flamengo e que arrebanhou vários jogadores do calçadão; Mozart, que mais tarde também administrou o departamento de xadrez do Flamengo; Metin e Átila Yurtsever, dois grandes (em mais de um sentido!) e inseparáveis irmãos que foram meus companheiros de equipe na classe B do Flamengo e hoje administram a empresa fundada pelo pai (Munur??) a Rico Linhas Aéreas; Wader Luiz Gomes, o Vavá, engraçadíssimo e espirituoso ao extremo, sempre com uma piada na ponta da língua ("Borracha? Não tenho borracha, lápis é para quem erra!"); Sebastião Araújo, o Maestro da Orquestra Tabajara; Pierre, um francês que se encarregava de "amaciar" os novatos do local; Renato Terra, músico e autor de Bem te vi (com Dalto e Cláudio Rabello); ah, a lista poderia continuar por horas!!
Neste ambiente heterogêneo que conheci o Mano e nos tornamos bons amigos. Depois de um par de anos entramos na faculdade, cada um foi tratar da sua vida, se afastou do xadrez e nunca mais nos falamos. Em 2002, cerca de 20 anos depois do clube da areia ter se dissolvido, recebo do Mano um e-mail convidando para o Campeonato Brasileiro de Soluções de Problemas de Xadrez de 2002/2003. Eu havia me afastado do universo dos problemas de xadrez pouco após a morte de Felix Sonnenfeld (Felix será ainda tema de outros artigos) em fevereiro de 1993 e este reencontro com o Mano me trouxe de volta a um ambiente que havia esquecido e sua página de Problemas de Xadrez reabriu portas há muito cerradas. É possível que haja quem lamente mas eu não tenho como agradecer ao Mano pelo meu retorno ao mundo dos problemas de xadrez! Obrigado Leo!!

Abaixo segue o texto enviado pelo Leo Mano.

"Em palestras ou reuniões com jogadores de xadrez, após apresentar um "mate em 2", surge a inevitável observação: "mas uma posição dessas jamais ocorrerá em uma partida"!

De fato, são tão poucas as pessoas que entendem as composições artísticas, que sou obrigado a recorrer a uma analogia: Após a leitura de um belo soneto, imagine o leitor rebatendo: "mas ninguém fala desse jeito"!

Me parece claro que o poeta não tem a única preocupação de se fazer entender. Ele busca, também, recorrendo à métrica, à rima, combinações de palavras, despertar no leitor um sentimento novo (jamais experimentado antes). Mas como conseguir isso sem que o leitor esteja preparado?

O compositor de problemas de xadrez, da mesma forma, não quer que seu trabalho seja apenas solucionado. Existe também um enredo a ser desvendado. Quanto mais emocionante, mais valoroso é o problema.

Reduzir as composições artísticas a uma mera ferramenta de treinamento, é renunciar a um mundo rico de emoções que, a bem da verdade, está ao alcance de poucos. Não por questões intelectuais mas por questões práticas: O estudo das composições artísticas requer mais tempo que o exigido para, simplesmente, jogar xadrez".

Leo Mano

7 de março de 2006

O tema índio

Uma discussão recente do Orkut na comunidade O Xadrez me deu a idéia de criar um espaço para falar sobre problemas de xadrez, técnicas solução de problemas, composições, histórias e curiosidades.
A idéia é ter um local onde se possa expandir e aprofundar a discussão e os tópicos abordados sem as limitações naturais do Orkut. Ainda não tenho uma visão clara de como este espaço vai se desenvolver mas esta mensagem é um ponto de partida que dá a idéia de onde podemos chegar. Porém é essencial a participação dos leitores com seus comentários, críticas e idéias.
Mãos à obra!!
Como abertura do blog vamos falar um pouco da história de um tema bastante conhecido de problemistas e solucionistas mas que a maioria dos jogadores práticos desconhecem, o tema Índio.
O tema índio apareceu pela primeira vez em um problema composto pelo Reverendo Henry A. Loveday, em 1845 e publicado no periódico inglês "Chess Players Chronicle" na coluna de Howard Staunton. Como a composição fora enviada de Nova Delhi, na Índia, Staunton batizou a composição de "Problema Índio" quando a publicou. Mais tarde o mecanismo encontrado no problema passou a ser chamado, por este motivo, de "Tema Índio".
A versão original de Loveday seria considerada incorreta sob o ponto de vista moderno de composição de problemas mas há muitos anos o problema foi corrigido preservando a idéia do autor.

Henry A. Loveday
Chess Players Chronicle, 1845

Brancas jogam e dão mate em 3 lances.

A manobra era original na época e teve um grande impacto nos compositores de então. O problema de Loveday foi publicado à exastão em revistas e publicações especializadas se tornando um sucesso imediato entre compositores e jogadores de xadrez.

O tema índio é uma manobra de problemas em 3 lances (embora possa aparecer em problemas mais longos) onde uma peça se move além de uma casa crítica (d2 no caso do problema de Loveday) para que no lance seguinte outra peça de movimento distinto se mova para a casa crítica, criando uma auto-interferência. Esta auto-interferência tem o objetivo de evitar que o adversário fique afogado por falta de lances. O movimento seguinte é um cheque, em geral mate, executado pela bateria formada pelas peças que se interferiram no segundo lance.
A solução do problema de Loveday é:
1. Bc1! b4
2. Td2 Rf4
3. Td4#

O elemento surpresa do tema levou à criação de vários problemas com variantes desta mesma idéia. Um exemplo interessante é a composição a seguir de W. T. Pierce que apareceu no "English Chess Problems" em 1876.


Brancas jogam e dão mate em 3 lances.

Embora seja um problema de fácil solução e com apenas uma variante (como no problema de Loveday) o mecanismo "índio" é bastante agradável visualmente e ainda há uma pequena surpresa no quadro final de mate. Deixo para o leitor o prazer de resolver o problema.

A execução mais simples do tema índio pode ser encontrada no diagrama abaixo.

Francisto Fiocati, A Gazeta, 1932

Brancas jogam e dão mate em 3 lances.

No Brasil este problema é conhecido no meio problemístico como "o Fiocati" por alusão ao seu autor Francisco Fiocati (10.08.1894-17.02.1934) porém a mesma posição (ou refletida) foi composta de forma independente por pelo menos 3 outros autores, entre eles o grande compositor americano Otto Wurzburg (1875-1951).

Dentre as várias demonstrações recentes do tema índio a mais interessante, na minha opinião, é o problema abaixo dos compositores ucranianos Viktor Melnichenko & Nikolai Rezvov que tirou a Terceira Menção Honrosa no Torneio Jubileu 60 anos de Tim Krabbé cujo laudo foi publicado em 2003.


As brancas jogam e dão mate em 4.

Este é um problema difícil e extremamente sutil, vale a pena trabalhar as soluções cuidadosamente para entender porque cada lance é essencial e perceber os distintos mecanismos de descravação do cavalo das pretas.

Aguardo suas críticas, sugestões e comentários! Até a próxima!